quinta-feira, 12 de abril de 2018

Um texto que não tem começo e infelizmente também não tem fim !


Estou numa sala escura preenchida por um barulho constante semelhante aquele que experiencio logo a seguir a desentupir os ouvidos no avião. Em cima da minha cabeça há uma luz forte que aponta para baixo. Vejo a sombra do meu cabelo despenteado e pergunto-me se é a minha silhueta  - ainda não me consegui habituar ao fato de ter o cabelo comprido. Tenho a parte de cima dos olhos pesados, apesar de ter dormido oito, de ter trabalhado apenas quatro e ainda só serem dezassete horas. Sinto-me perro. Perro de não utilizar todo o meu corpo. As únicas coisas que se queixam pelo seu excesso de utilização são os meus pés achatados pelo leve peso do meu corpo, as minhas nádegas doridas do selim da bicicleta de que tanto gosto, e a minha cabeça, também ela por falta de utilização (devida). Pensar muito sempre o faço, pergunto-me é se toda a gente também o faz - tento obter razões para não me censurar de o fazer e todos sabemos que o coletivo cria um vaco confortável mesmo que este seja inexplicável. Quando não penso, a máquina desliza - sou demasiado naive para me queixar dos tempos em piloto automático, e que bomba sou eu quando estou em piloto automático (como um relâmpago sem estrondo). Aqui estou eu, em baixo desta luz de prensença que desenha aos meus pé a minha silhueta escura e inerte, olhando esporadicamente para um filme que já vi a meio tempo umas três ou quatro vezes. É sobre um povo nómada qua habitava umas montanhas algerianas. 
(Ao virar a página, para escrever mais um pedaço de texto, tive tempo para olhar à minha volta e me aperceber que as pessoas que se encontravam ao meu lado não são as mesmas que se encontravam quando eu estava a começar a escrever). Estes povos nomadas parecem-me ser menos estrangeiros a eles mesmos do que qualquer pessoa sediada que eu conheço. Pergunto-me se é pela dissipação de parte das tradições nesta sociedade contemporanea - pelo seu caracter de utilidade mas mantidas pelo seu carácter ideológico - ou se estes nomadas seriam menos contentados pelo nomadismo e pelos desafios que este trás. Secalhar é isso. Secalhar este texto terá mais páginas, secalhar terei forças para terminar o que deixei ontem por fazer (apenas o fiz para continuar a ter coisas por fazer). É que não consigo não ter coisas por fazer, como tu bem o sabes (desculpa, não te quero meter nenhum tipo de pressão em cima...), como eu tão bem o demonstro. Não consigo não ter coisas para fazer. A primeira coisa que me ocorre quando penso sobre isto é que o tempo morto faz-me meditar sobre a vida, e, cada vez com mais regulariedade, afirmo que isso é das coisas mais fúnebres que podem existir. Pensar, secalhar vou deixar de pensar e vou começar a fazer. Secalhar. Como te disse não consigo não ter coisas para fazer e a coisa que mais me ocupa e dá que fazer é pensar, Pensar, principalmente nessas coisas que eu não consigo nunca fazer (concretamente).
Montpellier, 03-04-2018

Página 66, 67 e 68 do diário gráfico nº46.

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